Microbiota: uma comunidade invisível com impactos visíveis na saúde
Por acaso vocês já se perguntaram o que significa o termo bacteremia? Trata-se da presença de células bacterianas na corrente sanguínea, um tecido fluido que, em condições normais, é dito como um tecido estéril, já que não há a presença de qualquer microrganismo. Nesse mesmo contexto, entretanto, nem todos os tecidos e órgãos de nosso corpo são assim; muitos apresentam microrganismos normalmente, e são considerados tecidos colonizados por uma microbiota normal.
O termo microbiota normal, apesar da ênfase desse texto ser voltada para as bactérias, relaciona-se com a comunidade de microrganismos que colonizam os diferentes tecidos do organismo, desde todo o trato gastrointestinal, até a pele, globo ocular, trato urinário, trato respiratório (principalmente o superior) e até outros órgãos que ainda estão sob avaliação, como o útero de algumas mulheres… Mas como isso tudo funciona? Onde vivem? O que fazem? O que comem? Acompanha a gente aqui nesse texto para entender melhor.
Espalhada ao longo de muitos tecidos, a microbiota normal estabelece uma relação ecológica comensal ou mutualista com o seu hospedeiro, seja ele humano ou animal. Esse tipo de relação é conhecido por ser positiva/nula ou positiva/positiva, respectivamente. Ou seja, trazem benefício para o hospedeiro e/ou para as próprias bactérias que estão presentes nas microbiotas. É importante considerar que essa relação pode sofrer alterações, já que algumas variáveis pertinentes ao hospedeiro podem induzir o aumento dessa população microbiana, como queda de imunidade, desnutrição ou até mesmo níveis elevados de estresse. O desequilíbrio causado por essas variações é chamado disbiose e pode levar ao que é conhecido como doença oportunista, onde as bactérias da microbiota acabam causando uma doença por consequência.
Mas como ficamos colonizados por essas bactérias? Quando? De forma rápida, a colonização se dá pelo contato com os diferentes meios que apresentam diversos microrganismos não patogênicos que se adaptam aos tecidos dos bebês, porque é nessa fase que a colonização se inicia. Inclusive, até o tipo de parto influencia diretamente nesse contato inicial, onde a microbiota do trato geniturinário da mãe é responsável pelas primeiras espécies colonizadoras em crianças nascidas de parto vaginal, enquanto em parto cesariano, as primeiras bactérias que começam a colonizar o recém-nascido vêm da microbiota da pele e trato respiratório da mãe/cuidador e do ambiente. Já existem estudos relatando que, em alguns casos, a colonização pode ser iniciada ainda no útero, com bactérias que chegam até o feto através da placenta, órgão responsável por transferir ao bebê tudo o que ele precisa, a partir do sangue materno. Outra fonte importantíssima, não só para a colonização da microbiota da pele e trato respiratório do bebê mas, principalmente, do trato gastrointestinal, é a amamentação.
Cada sítio anatômico (região do corpo) apresenta um padrão de características como disponibilidade de determinados nutrientes, concentração específica de oxigênio, pH, temperatura e disponibilidade de água. Essas variações, em decorrência do local do corpo, fazem com que as microbiotas de diferentes tecidos sejam formadas por gêneros e espécies características de bactérias, ou seja, que estejam mais adaptadas àquelas condições. Essas bactérias, por sua vez, vão desempenhar alguns processos extremamente positivos para o organismo vivo. Generalizando: essas bactérias que, em condições normais, estão em um número específico em cada região do corpo, competem tanto por espaço, quanto por nutrientes, com as bactérias conhecidas como patógenos primários – aqueles que causam uma doença. Além disso, levam ao fortalecimento do sistema imunológico, por está sempre estimulando o nosso sistema imune, a fim de mantê-lo “sempre alerta”.
No caso do trato gastrointestinal, além do que já foi dito, as bactérias auxiliam, por exemplo, na produção e metabolismo de algumas vitaminas e nutrientes, possibilitando a absorção pelo organismo; algumas atuam ativando alguns fármacos, possibilitando seus efeitos farmacológicos, outras são responsáveis pelo metabolismo de compostos que podem vir a ser nocivos ao organismo. Por outro lado, a microbiota da pele apresenta funções como o desenvolvimento de uma barreira protetora, auxiliando na manutenção do pH da pele e evitando o desenvolvimento de microrganismos patogênicos.
No contexto de microbiota normal é importante ressaltar uma diferença entre microbiota residente e transitória. A residente diz respeito àquela população que está firmemente aderida e adaptada a determinada região, sendo normalmente presente nela. Por outro lado, a microbiota transitória não está normalmente em determinada região, não sendo adaptável e podendo ser facilmente removida. Essa microbiota transitória pode ser representada por microrganismos ambientais e por aqueles presentes em superfícies contaminadas. Dessa forma, pode servir como fonte de contaminação, uma vez que as mãos, por exemplo, acabam contraindo essa microbiota transitória externa e, se não for higienizada, funciona como uma fonte de veiculação dessas bactérias patogênicas. Não é à toa que a Organização Mundial da Saúde tem como um dos seus lemas: “lavar mãos salva vidas!”.
A presença de uma boa microbiota está associada à manutenção, prevenção e controle de algumas doenças no organismo, sendo alvo de manipulação e melhoramento para tratamento e controle de algumas doenças, como cânceres, doenças autoimunes, algumas condições associadas à motilidade do trato gastrointestinal. A microbiota normal é tão eficaz e benéfica que, recentemente, o FDA (Food and Drug Administration), órgão sanitário regulador dos Estados Unidos da América, aprovou um medicamento baseado nessa microbiota para tratamento de infecções recorrentes causadas pela bactéria Clostridioides difficile.
Atualmente, os quadros clínicos associados a C. difficile são em decorrência do uso prolongado de antibioticoterapia. Esse fator resulta em uma disbiose da microbiota intestinal, levando a uma redução da população de bactérias da microbiota, o que possibilita a multiplicação desta bactéria no cólon. Nesses casos, a clínica do paciente junto ao diagnóstico laboratorial vai guiar o esquema terapêutico. Em geral, as manifestações clínicas podem ser leves a moderadas, graves, graves complicadas e de recorrência.
No caso da forma leve à moderada, pode-se optar por uma alteração da farmacoterapia que o paciente está fazendo uso, a fim de minimizar as ações dessa terapia na microbiota normal, reduzindo a proporção de disbiose, bem como alterar alguns medicamentos adicionais que podem prejudicar o quadro, como o uso de antiácidos e agentes laxativos. Em casos moderados, opta-se por primeira escolha o uso do metronidazol e, em segunda escolha, a vancomicina, os dois antibióticos em conjunto. Em casos graves, escolhe-se como primeira escolha a vancomicina, e em casos graves complicados, associa-se o metronidazol à vancomicina para o tratamento.
Em casos de recorrência, a partir da segunda, opta-se por repetir o esquema com a vancomicina. No caso da terceira recorrência de manifestações por essa bactéria, a utilização da terapia conhecida como transplante de microbiota fecal é indicada. Para essa última opção de terapia, o FDA, como supracitado, aprovou o medicamento Vowst.
Esse medicamento consiste em uma cápsula com bactérias fecais purificadas de indivíduos saudáveis. Exatamente! Essa terapia é nomeada de transplante fecal, uma das formas de se fazer esta prática. Nesse caso, as bactérias específicas e benéficas são isoladas do intestino de um indivíduo saudável e são administradas em pacientes com essas infecções recorrentes. Essa terapia funciona como uma forma de reposição da microbiota capaz de competir com bactérias oportunistas ou patogênicas. Além desse caso mais chamativo, inúmeras formulações com probióticos são realizadas a fim de normalizar a microbiota normal intestinal, facilitar motilidade intestinal e auxiliar nos processos bioquímicos que se iniciam a nível intestinal, como a administração de algumas espécies dos gêneros Lactobacillus e Bifidobacterium.
Referências:
PEREIRA, Nelson. clínica médica Infecção pelo Clostridium difficile. v. 102, n. 5, 2014. Disponível em: <http://files.bvs.br/upload/S/0047-2077/2014/v102n5/a4506.pdf>.
Autor: Arthur Willkomm Kazniakowski
Revisora: Peixoto de Albuquerque
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